Efeito dominó: desmatamento na Amazônia ajuda a derreter neve do Tibete

Há um ditado recente, que se tornou popular entre os cientistas climáticos: “O que acontece no Ártico não fica no Ártico”. Agora, novas pesquisas acrescentam ao nosso entendimento que, da mesma forma, o que acontece na Floresta Amazônica não fica na Floresta Amazônica.

Há cerca de um mês, pesquisadores informaram na revista Nature Climate Change que o desmatamento na Floresta Amazônica pode ter efeitos colaterais para o clima em regiões distantes, potencialmente pressionando elementos-chave do sistema climático global – no Planalto Tibetano e na camada de gelo da Antártica Ocidental – em direção a pontos de ruptura climática que podem ser catastróficos para a humanidade e para a biodiversidade de nosso planeta.

O clima da Terra é controlado por uma complexa rede de interações entre sua atmosfera, oceanos, solos, gelo e biosfera. Os cientistas identificaram que as ações da humanidade estão atualmente levando elementos deste sistema a limites extremos, ou inclusive a pontos de inflexão, para além dos quais as mudanças se tornariam autossuficientes – fazendo com que todo o sistema terrestre se transforme em um novo estado possivelmente hostil à vida em suas formas atuais.

“Os componentes do sistema Terra que têm um limiar crítico além do qual um sistema se reorganiza são chamados de elementos de ruptura”, explica o coautor do estudo Jingfang Fan, um cientista do sistema terrestre da Universidade Normal de Pequim, na China, e do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático (PIK), na Alemanha.

Estes elementos de ruptura incluem o bioma Amazônia, as placas de gelo da Antártica Oriental e Ocidental, o permafrost ártico e a Grande Barreira de Corais, na Austrália, entre outros.

Existe a teoria de que um ponto de ruptura, ou ponto de inflexão, alcançado em uma região poderia desencadear um ponto de ruptura em outra, e assim por diante, como a derrubada de dominós.

Para investigar como diferentes elementos de ruptura no sistema climático global podem estar interconectados, os pesquisadores analisaram 40 anos de medições de temperatura do ar acumulado a cada hora perto da superfície pelo Centro Europeu de Previsão Meteorológica de Médio Prazo, em uma rede global de mais de 65 mil locais, ou nós.

Essa imensa rede de dados permitiu que os cientistas investigassem como as mudanças em uma região parecem se propagar através do sistema climático para afetar as temperaturas em outras partes do globo, comparando as relações entre as temperaturas nos nós dentro da Floresta Amazônica com os nós em outras regiões. Os pesquisadores então utilizaram simulações computadorizadas para modelar como as mudanças climáticas poderiam afetar essas conexões entre vários elementos de ruptura até o final do século 21.

“Esta é a primeira vez que a teoria [matemática] de redes complexas foi aplicada no contexto de pontos de inflexão [muito distantes]”, disse Teng Liu, pesquisador PhD em sistemas complexos da Universidade Normal de Beijing, que realizou o estudo. “Descobrimos que a Floresta Amazônica exibe uma teleconexão significativa com outros elementos de ruptura.”

A equipe de pesquisa identificou uma forte correlação entre as anomalias de temperatura – em que as condições regionais se sobrepõem à tendência global – na Floresta Amazônica e no Planalto Tibetano, a cerca de 15 mil quilômetros de distância. Estas anomalias permitiram aos autores distinguir entre a tendência global de aquecimento climático e as conexões climáticas diretas entre regiões distantes.

Os dados mostraram que as temperaturas anormalmente quentes na Amazônia e no Tibete coincidiram durante os últimos 40 anos. Eles encontraram uma relação semelhante entre a temperatura na Amazônia e na camada de gelo da Antártica Ocidental, um elemento chave de ruptura no sistema climático da Terra.

Simulações de mudanças climáticas futuras realizadas pelos pesquisadores indicaram que estas conexões provavelmente serão mantidas até 2100. Estes modelos computadorizados também mostraram que os futuros eventos climáticos extremos na Amazônia e no Planalto Tibetano provavelmente serão sincronizados.

O estudo matemático demonstrou que “se você perturba a Amazônia, há outras implicações em outras partes do mundo”, disse Tim Lenton, diretor do Global Systems Institute, da Universidade de Exeter, no Reino Unido, que não estava envolvido no estudo.

“Qualquer avanço do mapeamento confiável destas ligações entre os elementos de ruptura nos dá uma imagem mais rica do tipo de dinâmica não-linear combinada da Terra como um sistema”. Os cientistas concordam que a detecção precisa dos pontos de inflexão reais é impossível até que se tenha passado por eles, e só pode ser totalmente confirmada em retrospectiva.

O ciclo de água das florestas é responsável pela geração de aproximadamente metade da precipitação anual na Amazônia. Porém, tem crescido a preocupação de que, com a contínua perda e degradação da floresta tropical devido às atividades humanas, o bioma Amazônia está em transição para um novo estado mais seco, potencialmente causando a extinção da floresta remanescente e sua substituição por savana, com profundos impactos secundários para o sistema climático global.

Conexões climáticas de longa distância Analisando os dados coletados, os pesquisadores afirmam que o desmatamento (em sua maioria devido a incêndios intencionais) na Amazônia pode ser responsável pela conexão de longa distância com as condições no Planalto Tibetano, através de padrões de circulação atmosférica e oceânica. Essa conexão segue um caminho de 20 mil km que transporta o ar da América do Sul para a costa sul da África, depois para o norte, através da África Oriental, e finalmente para o oeste através do Oriente Médio até o Himalaia, onde chega ao Planalto Tibetano.

“O vento ou as correntes oceânicas podem carregar poeira ou partículas pretas de carbono geradas pela queima da Floresta Amazônica, que poderiam então ser transportadas para o Planalto Tibetano por este caminho”, ajudando a aquecer a atmosfera sobre o Tibete e derreter a neve, explicou Fan. No entanto, mais pesquisas serão necessárias para confirmar e definir de forma mais precisa tais trajetórias e as conexões climáticas intercontinentais que elas sustentam.

Os pesquisadores encontraram evidências de que “a cobertura de neve no Planalto Tibetano vem perdendo estabilidade desde 2008, o que implica que [a cobertura] é um elemento de ruptura ativado”, disse Liu. Embora o Planalto Tibetano possa estar próximo de seu ponto de inflexão, “não sabemos em que tipo de novo estado o local permanecerá se cruzar o limiar”, advertiu Fan.

Lenton disse que ainda não está claro se a passagem desse limiar no Planalto Tibetano levaria ao tipo de ciclo de feedback autossustentável que é a característica definidora de um elemento de ruptura, mas ele concordou que “mudanças abruptas no Planalto Tibetano teriam impactos bastante significativos na região e [provavelmente levariam] a retroalimentação climática também”.

O estudo aumenta o volume de evidências cada vez maior de que um ecossistema saudável e funcional na Amazônia é crucial, tanto para o clima regional no Brasil e em outras nações sul-americanas, como também para todo o sistema terrestre.

Mas prever exatamente quando os pontos de ruptura regionais serão alcançados, e como esses dominós climáticos regionais podem cair, é extremamente difícil de determinar – embora este estudo ajude a conectar alguns pontos climáticos globais. O que é certo é que estamos mudando a Terra de forma perigosa.

Lenton acredita que um mercado expandido para créditos de carbono genuínos na Amazônia poderia ser o “salvador final” para a preservação deste ecossistema vital, porém vulnerável.

Fonte: Uol

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