Evidências e dados científicos são única arma contra negacionismo climático
Imagem: René Cardillo via inteligência artificial
Lidar com o negacionismo climático faz parte do cotidiano de cientistas e jornalistas especializados no tema. Em meio à cobertura sobre a tragédia no Rio Grande do Sul, reportagens de Ecoa relacionando o desastre à crise do clima receberam comentários supostamente embasados em dados científicos para contradizer a ligação entre os eventos.
Para combater a desinformação e impedir que informações incorretas ganhem espaço, Ecoa consultou cientistas e instituições respeitadas para responder às afirmações falsas.
Sim, a agropecuária intensiva tem efeito direto no aquecimento global.
- No Brasil, o agro é responsável por 75% das emissões de gases de efeito estufa
- A maior parte vem da mudança no uso da terra, que é a derrubada de biomas para dar lugar a pastos e plantações
- Florestas esfriam o clima e têm um papel importante na regulação da temperatura do planeta
- Rebanhos de ruminantes emitem metano, o segundo gás de efeito estufa mais abundante gerado pelas atividades do homem
- Agropecuária emite óxido nitroso, produzido a partir dos resíduos dos animais e pelas transformações do nitrogênio de fertilizantes
Basta falar sobre o efeito da pecuária e da agricultura intensiva no clima que as críticas chegam. Mas como a ciência explica o efeito do agronegócio, especialmente a pecuária, no aquecimento global?
Todas as atividades do ser humano emitem gases do efeito estufa na atmosfera. Globalmente, 73% das emissões vêm da queima de combustíveis fósseis. No Brasil, o agro é responsável por 75% das emissões, explica Alexandre Araújo Costa, cientista do Clima, professor titular do mestrado em climatologia da Uece (Universidade Estadual do Ceará).
A maior parte disso vem da modificação do uso do solo, ou seja, do desmatamento de biomas florestais para substituição por pastos e plantações. A derrubada das matas altera as emissões porque as árvores e plantas nativas são capazes de capturar e acumular gases.
Um estudo internacional que reuniu pesquisadores do Ifusp (Instituto de Física da USP) e da Unifesp observou que as emissões das florestas esfriam o clima e têm um papel importante na regulação da temperatura do planeta. Derrubando as florestas, o efeito resfriador se perde e o aquecimento global cresce.
Outra parte importante vem da liberação de metano através dos rebanhos de animais ruminantes, principalmente do gado bovino, durante a fermentação entérica, processo digestivo popularmente conhecido como o “arroto do boi”. Com 234,4 milhões de cabeças de gado no país, isso corresponde a cerca de 398 milhões de toneladas de CO2-equivalente provenientes da fermentação entérica.
“O metano é o segundo gás de efeito estufa mais abundante gerado pelo homem, 86 vezes mais poderoso do que o dióxido de carbono em 20 anos na atmosfera e 34 vezes mais poderoso em 100 anos. Como se trata de um gás que permanece por um período relativamente curto na atmosfera, evitar que seja emitido traz um benefício rápido em termos de limitar o aumento da temperatura a curto prazo”, diz José A. Marengo, climatologista e coordenador geral de pesquisa e desenvolvimento do Cemaden/MCTI (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), do governo federal.
Outro gás emitido pela agropecuária, o óxido nitroso (N2O) é produzido a partir dos resíduos dos animais e pelas transformações do nitrogênio de fertilizantes nitrogenados, o que contribui para amplificar o efeito estufa. Na escala de 100 anos, emitir um grama de óxido nitroso equivale a emitir 265 gramas de CO2.
Nesse contexto, a pastagem degradada agrava as emissões de gases do efeito estufa e a perda de carbono do solo. Isso porque uma pastagem ruim faz com que o animal ganhe o peso de abate muito lentamente devido à pouca quantidade de gramínea, explica Carlos Eduardo Pellegrino Cerri, pesquisador do Centro de Pesquisa e Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI) da USP (Universidade de São Paulo) e coordenador do Ccarbon (Centro de Estudos de Carbono em Agricultura Tropical da USP).
Entretanto, Cerri pondera que práticas de manejo sustentáveis podem reduzir as emissões de gases do efeito estufa e remover CO2 da atmosfera, fixando-o nas plantas (via fotossíntese) e no solo (via sequestro de carbono). “A agropecuária tem condições, uma vez que práticas de manejo sustentáveis sejam adotadas, de remover mais gases da atmosfera do que emiti-los”, completa.
Mas há especialistas que consideram tais medidas insuficientes, defendendo mudanças mais profundas no sistema alimentar. “A adoção de dietas com maior presença de vegetais e redução substancial no consumo de carnes e outros produtos de origem animal, especialmente advindos de animais ruminantes, além de reduzir rapidamente as emissões de gases do efeito estufa, pode aliviar os impactos da agropecuária relativos a outros limites planetários, como o uso da terra, de água doce, ciclos biogeoquímicos do nitrogênio e do fósforo”, afirma Costa.
Não, o vapor d’água não é o principal causador do aquecimento global
- Apesar de ser o mais abundante gás de efeito estufa na atmosfera, o vapor d’água não causa aquecimento global
- O efeito estufa se intensifica pelo aumento dos gases de efeito estufa de vida longa, como o dióxido de carbono e o óxido nitroso.
- O vapor d’água é rapidamente reciclado pela chuva ou neve, sendo sempre removido em algum momento.
Um comentário muito comum nos conteúdos de Ecoa diz respeito ao fato de o vapor d’água, como nas afirmações a seguir:
“Esta é a maior baboseira que já li. Depois de atacar o CO2 como vilão, falar do N2O é hilário. Quando se fala de algo importante, deve ser considerada a sua relevância no contexto. Dos cerca de 150 W/m2 de energia retidos pelos gases atmosféricos, no chamado efeito estufa, cerca de 100 W/m2 são retidos pelo vapor de água e 50 W/m2 são retidos pelo CO2, ambos produzidos em sua grande maioria pela natureza. Se somarmos todos os gases produzidos em decorrência da ação humana, que inclui os gases produzidos pela pequária [sic], geram uma retenção de apenas 2,4 W/m2. Um aumento de 1,6% que é responsável por aumentar a temperatura em 0,6°C, para os 17°C de média. Viva a pequária [sic] e bom churrasco.”
“Segue a eterna confusão ridícula entre carbono e CO2 que são coisas totalmente distintas, com propriedades físicas e químicas distintas. O CO2 é bem mais denso (d=1,84) que O2 (d=1,33) e N2 (d=1,16). Devido à elementar LEI DA GRAVIDADE, o CO2 não fica distribuído pela atmosfera, ele fica concentrado na superfície dos continentes e dos oceanos, onde é lentamente absorvido. O principal gás do efeito estufa não é e nunca foi o CO2. É o vapor d’água (40.000 ppm), que é 100 vezes mais abundante que o CO2 (450 ppm). Nosso planeta tem 12 trilhões de metros cúbicos de vapor d’água.”
O vapor d’água não é o principal responsável pelo aquecimento global apesar de ser o mais abundante gás de efeito estufa na atmosfera. Parece contraditório, mas não é. Acontece que efeito estufa não é a mesma coisa que aquecimento global.
O efeito estufa é o processo pelo qual os gases na atmosfera da Terra retêm o calor do Sol. Esse fenômeno natural é necessário para manter o planeta habitável. Porém, o excesso de gases do efeito estufa gera um desequilíbrio climático que leva ao aquecimento global, que é a elevação da temperatura média do planeta além do necessário para a vida ser possível. Com as emissões resultantes das atividades humanas, estamos perturbando o efeito estufa, explica o professor Costa, da Uece.
O vapor d’água é, de fato, o principal absorvedor da radiação solar e terrestre com 51 W/m2, enquanto o CO2 absorve menos da metade, 24 W/m2, e todos os outros gases juntos absorvem outros 11 W/m2. Então, se há mais vapor e ele retém mais radiação, por que ele não é o grande culpado do aquecimento global?
Funciona assim: à medida que os gases de efeito estufa como o dióxido de carbono e o óxido nitroso aumentam, a temperatura da Terra aumenta em resposta, o que aumenta a evaporação da água. Esse vapor absorve o calor irradiado pela Terra e impede que ele escape para o espaço. Isso aquece ainda mais a atmosfera, resultando em ainda mais vapor d’água, amplificando o efeito do CO2 e aquecendo ainda mais o planeta. É o que os cientistas chamam de “feedback de retroalimentação”
O efeito estufa não se intensifica por conta do acréscimo do vapor d’água na atmosfera, mas pelo aumento dos gases de efeito estufa de vida longa, como o CO2 e o N2O. O dióxido de carbono sozinho é responsável por aproximadamente um terço do aumento total da temperatura da Terra. Mesmo pequenos aumentos em sua concentração têm impactos significativos devido a sua longa permanência na atmosfera.
Por outro lado, o vapor d’água é rapidamente reciclado pela chuva ou neve, enquanto o dióxido de carbono passa séculos no ar. “O vapor d’água não é um gás de efeito estufa de vida longa. Ele pode condensar ou sublimar, passando para a fase líquida ou fase sólida, sendo sempre removido em algum momento”, diz Costa. “Se emitíssemos apenas vapor d’ água na atmosfera não haveria aquecimento global”, completa.
Com relação ao CO2 ficar concentrado na superfície devido à lei da gravidade, a afirmação é totalmente equivocada. A densidade dos gases não tem relação alguma com o espaço que eles ocupam (mais ou menos próximos da superfície). “Os gases que estão na atmosfera tendem a se misturar de forma homogênea, com exceção dos gases de vida curta, como o vapor d’água. Eles ocupam todo o volume que estiver disponível para eles e vão seguir as leis da física de pressão, temperatura etc.”, diz Costa, ressaltando que esse é um conceito básico da Física.
O argumento da abundância também não se sustenta, porque não se trata de uma questão de volume. “É como comparar beber dois litros de água e 10 ml de uma solução de cianureto. O que faz mal? As moléculas não são iguais, não funciona dessa forma”, explica o professor.
Não, o aquecimento global não é um acontecimento natural do planeta
- Efeito estufa e aquecimento global não são a mesma coisa
- O efeito estufa é o processo pelo qual os gases na atmosfera da Terra retêm o calor do Sol. Esse fenômeno natural é necessário para manter o planeta habitável.
- Desde a industrialização, as atividades humanas se tornaram as maiores emissoras de gases de efeito estufa, acelerando e intensificando o processo natural do planeta.
- O excesso de gases do efeito estufa leva ao aquecimento global, que é a elevação da temperatura média do planeta além do necessário para a vida ser possível.
Uma das afirmações mais populares entre os negacionistas climáticos é que o aquecimento global é algo natural, pois a oscilação da temperatura faz parte da natureza.
Os especialistas consultados por Ecoa explicam que a mudança climática tem um componente natural e um componente humano. “Na escala geológica, a mudança de clima é um processo natural – o aumento na concentração de CO2 e de temperatura já aconteceu no passado na ausência da raça humana. O caso mais recente teria sido a passagem para o Holoceno (há cerca de 11 mil anos atrás), onde os parâmetros orbitais da Terra mudaram naturalmente sem a influência humana”, diz Marengo.
Porém, o que vemos desde a industrialização é que as atividades humanas se tornaram as maiores emissoras de gases de efeito estufa, acelerando e intensificando o processo natural do planeta.
O resultado das gigantescas emissões humanas é o acúmulo dos gases de efeito de estufa na atmosfera, cujas concentrações de CO2 saltaram de 280 partes por milhão (ppm) nos tempos pré-industriais para 420 ppm hoje em dia; e a de metano, de 700 ppb para acima de 1900 ppb – apenas para citar os dois principais.
“Estudos feitos com modelos climáticos usados para simular o comportamento do clima com e sem a presença dos fatores antrópicos mostram que, somente com as contribuições naturais, o planeta não teria aquecido na segunda metade do século 20 e no primeiro quarto do século 21. As simulações em que a contribuição humana foi incluída – em particular com as emissões de gases de efeito estufa – exibem um aquecimento de acordo com o que é observado atualmente”, diz Costa, da Uece.”
Não, países mais populosos não são necessariamente os maiores emissores de gases de efeito estufa
- Os países com as taxas mais altas de emissões per capita são principalmente os com populações relativamente pequenas e indústrias altamente emissoras ou países com emissões mais concentradas em mudanças de uso do solo
- Os maiores emissores per capita em 2022 foram Qatar (37,6 toneladas), Emirados Árabes Unidos (25,8 toneladas) e Bahrein (25,7 toneladas)
- Em números totais, os maiores emissores são China, EUA e Índia, nesta ordem.
Segundo o WRI (World Resources Institute), em 2019 os países com as taxas mais altas de emissões per capita eram principalmente os com populações relativamente pequenas e indústrias altamente emissoras ou países com emissões mais concentradas em mudanças de uso do solo, como a conversão de terras para agricultura.
“Embora a Índia esteja entre os maiores emissores, quando se leva em conta a população para analisar as emissões per capita de gases do efeito estufa, o país altamente populoso fica significativamente mais baixo no ranking em comparação com os outros 10 maiores emissores. Coletivamente, esse grupo de nações representa mais de dois terços das emissões globais de gases do efeito estufa. O mundo não pode combater com sucesso as mudanças climáticas sem uma ação significativa dos 10 maiores emissores”, explica o relatório do WRI.
Qatar, Bahrein, Kuait, Turcomenistão e os Emirados Árabes Unidos, por exemplo, têm menos de 10 milhões de habitantes, mas possuem indústrias intensivas em emissões, como a produção de petróleo e gasolina, produtos de petróleo refinado, petroquímicos e fertilizantes
Segundo o climatologista Marengo, Guiana (13,13 milhões de toneladas, sendo 4.4 toneladas per capita), Suriname (7,85 milhões de toneladas, sendo 5,8 toneladas per capita) e Botsuana (29,8 milhões de toneladas, sendo 2,8 toneladas per capita) também têm menos de 10 milhões de habitantes, mas possuem altos níveis de emissões originadas de desmatamento e incêndios florestais.
China, EUA e Índia, nessa ordem, são os três maiores emissores de gases do efeito estufa, além de serem os mais populosos do mundo – com a Índia em primeiro lugar. Os três contribuem com 42,6% das emissões totais, enquanto os 100 países menos populosos são responsáveis por apenas 2,9%, de acordo com o WRI.
Entretanto, um fator importante a ser considerado é o volume histórico de emissões. Apesar de hoje emitir muito mais que os EUA, a China ainda não chegou ao volume histórico emitido pelos americanos. “Isso é importante porque o CO2 permanece por séculos na atmosfera e, portanto, países que passaram primeiro pelo processo de industrialização emitiram antes e boa parte dos gases que se mantêm na atmosfera”, diz Costa.
De acordo com o docente, a responsabilidade pelas emissões também é diferente em cada país, pois o padrão de vida dos setores mais abastados da sociedade leva a emissões de gases de efeito estufa em quantidades maiores do que o emitido pelos mais pobres – por exemplo, globalmente as emissões do 1% mais rico equivalem às emissões dos 66% mais pobres.
De acordo com o mais recente Relatório sobre a Lacuna de Emissões do Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), combinados, os 20 países mais ricos do mundo (G20) foram responsáveis por 76% das emissões globais, incluindo as resultantes da mudança do uso da terra. Em contraste, os países menos desenvolvidos foram responsáveis por 3,8% das emissões globais, enquanto os pequenos Estados insulares em desenvolvimento contribuíram com menos de 1%.
Quando se olha para os volumes per capita, o cenário muda. “É preciso falar dos países com altas emissões per capita, porque não podem ficar escondidos atrás de suas pequenas dimensões”, diz Costa, mencionando os Estados produtores de petróleo.
As emissões de gases de efeito estufa per capita dos EUA e da Rússia são mais do que o dobro da média mundial de 6,5 toneladas de CO2 equivalente, enquanto na Índia permanecem abaixo da metade dessa média. O relatório considera as emissões provenientes de combustíveis fósseis e da indústria, além de mudanças no uso da terra.
Por outro lado, os maiores emissores per capita em 2022, de acordo com o Our World Data, que não considera as emissões por mudança de uso da terra, foram Qatar (37,6 toneladas), Emirados Árabes Unidos (25,8 toneladas) e Bahrein (25,7 toneladas). Nenhum dos maiores emissores em números absolutos aparece entre os dez maiores emissores per capita.?
E como lidar com negacionistas climáticos?
- Se a pessoa se mostrar aberta a conversar, compartilhe informações com referências
- Se a pessoa não se mostrar aberta ao diálogo, ela provavelmente acredita num pacote maior de negacionismos ideológicos e não estará disposta a ouvir seus argumentos.
De acordo com a divulgadora científica Karina Bruno Lima, existem diferentes graus de negacionismo. Em muitos casos, a pessoa tem dúvidas ou pode existir uma lacuna que foi preenchida pela desinformação. Se ela não entende como funciona o processo científico e acredita em qualquer conteúdo, vale a pena explicar e mandar bons artigos e referências. Muitas vezes isso já é suficiente para que ela repense – o que não quer dizer que ela vá mudar de ideia imediatamente.
“No entanto, se a pessoa não está disposta, desconfia de bases confiáveis (relatórios do IPCC, dados da Nasa etc), nega a ampla base que a ciência do clima vem construindo há mais de um século, acredita em teorias conspiratórias e entra em um debate sem o objetivo de aprender algo, provavelmente nada disso será efetivo. Geralmente esse tipo de negacionista climático está abraçado a um pacote de negacionismos diversos que está atrelado a questões políticas e ideológicas”, afirma Karina, que é doutoranda em Climatologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Até mesmo pessoas conscientes sobre a questão climática podem cair em armadilhas como a de que nada pode ser feito para resolver a crise. Esse tipo de pensamento é imobilizador e prejudicial.
“A indústria dos combustíveis fósseis investe em negacionismo há décadas. Antes era implantando a dúvida, hoje, como não é possível negar o aquecimento global e sua causa antropogênica (emissão de gases de efeito estufa, principalmente através da queima de combustíveis fósseis), as estratégias são outras: negar a urgência e tentar impor falsas soluções. Toda desinformação disfarçada de preocupação pode influenciar os indivíduos e contribuir para o negacionismo”, alerta a divulgadora científica.
Tem alguma dúvida sobre mudança climática? Deixe nos comentários que selecionaremos as melhores perguntas para responder aqui em Ecoa.